O vento e a brisa já não são os mesmos que sopravam na velha capa de cor incógnita desmemoriada, feita para vôos altos, nem ao menos o brilho nos olhos e a imensidão do mundo, talvez os sonhos ainda sejam os mesmos. Quem sabe a vontade de voar, na crença descabida de uma criança inocente, sem rugas, sem medo e sem dentes, um salto de cima do sofá, nada mais é que o vôo ao infinito, que o sonho realizado, de um herói oprimido pela vida adulta. O vôo que nunca aconteceria terminando em um pouso pouco sinuoso, ainda sim sem a emoção juvenil de um rasante sobre as cabeças sóbrias, dos que sem capa hoje voam como se fossem pássaros alados, e não pousa em lugar algum. Minha capa era capa de herói, e os meus poderes eram o de poder planejar a felicidade como quem faz o plano de vôo, como quem tem a certeza, que depois de grande é que se alça vôo. A capa foi costurada sob medida, na máquina mãe de todas as máquinas, geradora de sonhos interrompidos que se proliferam em cada linha de algodão, que viram capas, que fazem voar, que fazem sonhar. Sonhava correndo no vento, no gramado do quintal, sonhava de capa, protegido pela ignorância, pelo não saber, pela infância subnutrida de materialidade, subjetiva em sua essência, cheia de planos e de certezas, cheia de sonhos e de vôos nunca feitos, nunca alcançados. A capa era de fazer voar, no entanto como uma pedra amarrada nos calcanhares, estagnou o sonho, bloqueou o vôo, tornou real e objetivo o mundo, materializou a dor de ser, de tomar para si as responsabilidades de não ter mais uma capa mágica que lhe possa proteger. De pés no chão, e capa na cabeça, numa infantilidade quase que mortal, desprotegido como um motociclista sem capacete, feito um herói aposentado que se lança ao vento na confiança do passado, no descompasso dessa dança, sem harmonia, sem parceria, sem capa. O sofá já não é o maior dos desafios, viver como alguém comum, sem disfarce, sem poderes, sem a dignidade de ser quem sempre foi no mundo paralelo da infância, é lutar contra toda loucura de não ser normal e contra todas as normalidades insanas que não me permitem sair por ai, de capa, saltando meio fios, saltando sofás, sem saber voar.
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