Ontem, marquei como de
costume, horário no salão de cabeleireiro, corto o cabelo mensalmente no mesmo
lugar, e essa ação corriqueira estabelece para mim um estado de normalidade.
Como de costume, me desloquei
ao trabalho, executei minhas tarefas de rotina, preparei aulas, realizei o
horário de café, confraternizei com amigos de trabalho, e tudo isso caracteriza
um estado de normalidade.
Dia desses, estive na fila do
banco, mensalmente de alguma maneira alguma fila tem que ser enfrentada para
efetivar o pagamento das contas, e tudo isso reflete um estado de normalidade.
Semanalmente abasteço minha
moto, meio de locomoção para trabalhar, e para diversas atividades diárias, vou
até o posto de gasolina, peço que complete, e tudo isso corrobora com um estado
de normalidade.
Na atualidade, verificamos
diariamente, e-mails, notificações de aplicativos, como Facebook, WhatsApp,
entre outros, que nos servem como meio de comunicação e meio de informação, e
tudo isso simboliza diante da conjuntura, um estado de normalidade.
Faz parte deste estado de
normalidade enfrentar filas em supermercados, encontrar pessoas e ouvir
conversas.
O país há tempos estabeleceu-se
como democracia representativa, e a cada 4 anos a população tem de eleger um
representante, este modelo político dentro daquilo que está estabelecido
demonstra um estado de normalidade.
Existe pelo mundo a fora, uma
porção de guerras intermináveis, das quais não conseguimos ter qualquer
compreensão da totalidade, e isso, configura um estado de normalidade.
Sabemos que uma porcentagem
mínima da população concentra toda a riqueza do mundo, e que por mais que se
madrugue diariamente para trabalhar honestamente, jamais se fará parte dessa
porcentagem, e isso faz parte da normalidade.
Sabemos que a educação nunca
foi vista como investimento, e sempre esteve a serviço da ideologia dominante, e
quanto mais ignorante a população, mais fácil o controle da massa, mas isso,
define um estado de normalidade.
Produtos e marcas são
humanizadas e ganham mais importância que o próprio homem, o homem é
coisificado, se torna um produto pronto a ser consumido, há tempos isso
traduz-se em estado de normalidade.
As mulheres ainda são
assassinadas e estupradas pelo simples fato de serem mulheres, e isto
estabelece um estado de normalidade.
Os negros jogadores de futebol
no século 21 são chamados de macacos como forma de “brincadeira”, mas isso tudo
reforça este estado de normalidade.
Gays e travestis são mortos,
expulsos de casa, marginalizados, viram piadas em programas de TV, simplesmente
para certificar-se do não rompimento com o estado de normalidade.
Terreiros, religiões afro-brasileiras
são marginalizadas e atacadas pelo lobby dos fundamentalistas religiosos,
sempre mantendo este estado de normalidade.
Os cristãos/evangélicos em
pleno século 21 buscam evangelizar os índios, matar a diversidade cultural, e
este é o estado da normalidade.
Poucas Famílias são donas de
terras infinitas, pastos infinitos, gados infinitos, eucaliptos infinitos, enquanto
milhares de famílias sequer tem onde morar, e quando se amontoam em algum
lugar, o poder público efetivamente trata de restabelecer a reintegração de
posse, e enquanto a isso, nada fora de um estado de normalidade.
A TV nos diz o que temos que
vestir, o que temos que comer, como devemos agir, quais ideias devemos seguir,
e mesmo sabendo que TVs são empresas, e que empresas são pagas, e que só quem
tem muito dinheiro pode dizer o que a TV pode dizer, continuamos a acreditar
inquestionavelmente no que a grande mídia tem a nos dizer, e isso só reafirma,
tudo está no seu perfeito estado de normalidade.
Sabemos que a democracia
representativa sempre foi um alívio aos que se enojam dos assuntos políticos,
dos que sentem asco de entrar nesse tipo de discussão. Poder dar a procuração a
outra pessoa para decidir tudo que há de mais importante em nossas vidas não é
nada mais que um estado pleno de normalidade.
Pessoas dispostas a defender o
sistema capitalista, como se fosse um sistema enviado direto dos anjos gabrieis
depois do toque da corneta divina, sem sequer saber da sua origem e da sua
evolução, configura ainda um estado de normalidade.
Apoiar-se na ideia dos EUA
enquanto herói do planeta, bem como se retrata nos filmes de Hollywood, compreende-se como estado de normalidade.
Ignorar a linha histórica, o
passado, os fatos que desencadearam a atualidade como ela é hoje,
emblematicamente solidifica este estado de normalidade.
Este estado de normalidade
entra em colapso toda vez que surge no horizonte numa visão desfocada, a
possibilidade da compreensão de que o estado de normalidade, não é de fato a
realidade concreta. Todas as vezes que o estado de normalidade se encontra
ameaçado ele reproduz milhares de realidades, e assim conserva a sua essência.
Em síntese, aquela fila de
banco, aquela fila de supermercado, aquele horário no cabelereiro, aquela
confraternização com os amigos de trabalho no horário do café que não passava
de um simples “será que chove?” em seu estado de normalidade, transfigura-se e
torna-se desde corrupção na Petrobras, até golpe comunista via corrente de
WhatsApp. O estado de normalidade para se manter enquanto tal, precisa de um
colapso, uma espécie de Estado de demência.
Este estado de demência em
suma se dissolve no imaginário social anteriormente já estático e apático do
estado de normalidade reverberando numa espécie de movimento massificado sem
direção. Um monstro desorientado, que encontra mormente orientação de seu
criador, o Frankenstein do status quo.
Este monstro em suas crises
epiléticas pede impeachment, pede intervenção militar, pede intervenção dos
EUA. Este monstro em suas crises dissemina boatos de guerras civis, compartilha
terror, aterroriza-se a si próprio. Este monstro muito bem orientado, tem
arrepios com tudo que possa simbolizar o fim do imperialismo e do colonialismo.
Este monstro subserviente ao capital sofre das suas mazelas em estado de
normalidade, contudo em seu estado de demência pegaria em armas para defende-lo.
Este monstro escarnecido, habita a pele dos mais vitimados pelo sistema, este
monstro costurado feito tapete de retalhos é um amontoado de todo tipo de
gente, o estado de demência não perdoa, não se comove, percorre as mentes mais
brilhantes das ciências exatas, até os mais desprovidos de conhecimento,
diga-se de passagem, desprovidos por que assim o sistema quer.
Em estado de demência, formam-se
filas gigantescas diante do “fim da gasolina”.
Em estado de demência,
enchem-se carrinhos no supermercado.
Em estado de demência promete-se
uma multidão as ruas pelo impeachment de uma presidente que acabou de ser
eleita democraticamente dentro dos conceitos de democracia que o sistema
permite.
Em estado de demência, mandar-se-ia
comunistas, socialistas e anticapitalistas para o corredor da morte.
Em estado de demência, dia do
orgulho heterossexual, redução da maioridade penal, e revogação da lei de
desarmamento, alimentam o monstro.
Em estado de demência, a
militarização de grupos evangélicos, e a formação de “gladiadores do altar”,
matam a sede do monstro.
Em estado de demência, não se
sabe se o estado de normalidade pode ser considerado um monstro adormecido,
sempre disposto a servir quando
solicitado, ou se enquanto estado de demência pode ser a possibilidade de uma
catarse rumo a revolução.
Mas por enquanto, só estado demência,
e nada mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Pedras na janela