Existe em comum entre as religiões justamente a busca por salvação, uma busca aparentemente pouco interessada em tornar os sacrifícios terrestres em moeda de troca para uma eternidade no paraíso. O homem coisa morre todos os dias por dentro e por fora, e vive uma vida vazia de viver, recheada de uma esperança no fim, no além, no que há depois das dores terrenas. O homem coisa acredita que o voto de pobreza, que o nome limpo, e a dignidade são as únicas coisas que lhe restam, e amedrontados pelos dogmas religiosos de um inferno concreto, com demônios, e larvas ferventes, deixam-se usurpar suas vidas, com o verdadeiro sentido de viver.
Quem nunca foi repreendido por estar se divertindo enquanto outros estavam ajoelhados aos pés de algum santo rezando e clamando a Deus em troca de créditos para o céu? Oras, valerá mais a pena viver uma vida de sacrifícios na terra, para não enfrentar a fúria de Deus, que impiedoso mandará sem passagem de volta, seus filhos rebeldes para o fundo do inferno.
É cruel essa cultura do inferno, de pessoas inseguras, amedrontadas, que se privam por não acreditarem nelas mesmas. No entanto, crêem em tantos absurdos, que se esquecendo de acreditar em si mesmas, vêem-se como meros pecadores, esperando a redenção. Não há de se por em discussão as crenças, crer é algo tão peculiar, tão intimo, não diz respeito à opinião alheia, a não ser quando essa crença faz parte de uma série de crenças construídas socialmente com objetivos pouco amistosos de manipulação da consciência social. Crer em si mesmo, seria no sentido da meritocracia, agradecer a si mesmo pelas graças diárias, que não são destinos, são conseqüências de atitudes concretas que fazem parte da realidade e independem de qualquer crença em algum ser superior. Digamos que alguém exposto culturalmente a existência de um ser onipotente, tomado como verdade absoluta, ao deparar-se com a consciência da realidade da não existência de um ser acima de todas as coisas, ao se por de frente com as contradições e crueldades do mundo capitalista, sentir-se-á solitário. Os homens há tempos vêm sendo construídos assim, covardes, dependentes, incapazes de tomarem decisões, conformados, bem como o sistema pede. Diante dessa covardia, sem saber onde amparar-se, define impossível e inaceitável a inexistência de um Deus que o salve e que resolva seus problemas terrestres.
Essa ideologia capitalista cristã, que cria essa consciência do bem e do mal, do céu e do inferno, é a mesma que é impiedosa diante das diferenças de classes, tem como principal foco, a preservação da propriedade privada, a concentração das riquezas e a exploração do trabalho do homem coisa, que dentro do ciclo, se vê como parte de uma passagem bíblica, o pobre, que receberá o milagre, e terá o direito sagrado ao reino dos céus. Este condena os atos humanos, os atos carnais, e os instintos e desejos que emergem no homem. O homem animal é visto em suma, como o demônio, a possessão, enquanto o homem reprimido de seus desejos, contra sua natureza, temente as normas e padrões sociais, garantem eticamente o seu espaço ao lado do ser supremo, nos campos verdejantes do paraíso eterno. Sejamos irônicos com a sensibilidade máxima para compreender minhas palavras, que são sérias, contudo permeiam o caminho critico da comédia, do cômico, do tragicômico.
Somos todos irmãos, filhos do mesmo pai, entretanto, humanos o suficiente para diante do nosso livre arbítrio julgar e condenar na terra. E a justiça terrestre é cega, mas a divina meu caro, essa não erra, mas também nunca acertou. Pregou o salvador na cruz, e condena dia após dia uma multidão a morrer de fome, sem ter onde morar, sem a dignidade que alguns, classe média tanto se orgulha, e não bastasse isso tudo, ainda tem que sentir-se culpados, pecadores, e amedrontados pois além do inferno da terra, um outro bem pior, caso não siga as regras sociais impostas, ou os dogmas da igreja, que para mim são a mesma coisa, o espera após a morte do corpo, da carne, dos instintos animais.
O mal, também é um constructo social, e depende dos valores morais que foram designados por um grupo social, e enquanto paradigmas se reproduzem pela história. O mal hoje se representa de várias formas, e vão desde os marginalizados que não tem o que perder nas ruas, que podem matar por uma pedra de crack, mas que são produtos do próprio sistema, mesmo a classe média que se esconde atrás de cercas elétricas insistindo em negar, até a liberação dos instintos mais primitivos do homem, como matar para comer, ou por qualquer outro motivo passional. O homem vai realmente para o inferno? Então qual o sentido dele pagar pelos crimes aqui na terra? Crimes esses que existem por que homens decidiram sobre quais atitudes não seriam aceitáveis em sociedade. Os punidos pela justiça terrestre seriam punidos duas vezes, uma aqui e outra no inferno. Uma viva a impunidade que pode ser resolvida no inferno. O fato é que o inferno tornou-se a primeira e ultima instancia, para controlar a consciência da sociedade, primeira por que desde a tenra infância, aprende-se no berço da religião quais os valores morais que cercearão sua liberdade de ser quem é pelo resto da vida, e se mesmo assim ousar transgredir, te mostrará o inferno na terra, e alertarão de que o inferno após a morte pode ainda ser pior.
Temer o inferno é nada mais do que reproduzir os paradigmas sociais capitalistas, que sobrevivem das massas acéfalas, crentes, que ao invés de enfrentar concretamente os conflitos que lhes surgem, ajoelham-se num altar, e aguardam um milagre, depois ignoram todas as evidências de que as soluções se deram de modo real, concreto, e atribuem os resultados aos seus atos simbólicos e abstratos. E assim o inferno se solidifica, e vira arma na mão de quem tem o poder.